Por que uma jovem nordestina, ainda na adolescência, decidiu vestir-se como homem e tentar entrar para o Exército em pleno século XIX? O que levou Jovita Feitosa a desafiar o poder imperial, a estrutura militar e a mentalidade machista da sua época? E por que sua história foi, por tanto tempo, esquecida?
Essas perguntas são essenciais para compreender uma das trajetórias mais fascinantes e dolorosas da história do Brasil. A vida de Antônia Alves Feitosa, mais conhecida como Jovita Feitosa, é marcada por coragem, rebeldia, exposição midiática, abandono e uma morte trágica. Uma trajetória que fala, ao mesmo tempo, sobre gênero, guerra, heroísmo e o custo da ousadia feminina no Brasil oitocentista.
Desde cedo, Jovita já era uma mulher em movimento
Jovita nasceu em 8 de março de 1848, na cidade de Tauá, no sertão do Ceará. Era filha de Maria Rodrigues de Oliveira e Simeão Bispo de Oliveira, um homem com certa estabilidade econômica. Ainda menina, viu sua vida mudar drasticamente com a morte da mãe, durante uma epidemia de cólera um trauma frequente nas famílias brasileiras do século XIX.
Sem a figura materna e com um pai ausente, Jovita foi enviada para Jaicós, no Piauí, para viver com um tio, descrito por fontes como músico. Lá, segundo relatos, teria recebido uma educação razoável — sabia ler, escrever, tinha instrução religiosa e talvez até habilidades musicais. Mas essa nova morada tampouco ofereceu estabilidade emocional. Após conflitos familiares, ela fugiu de casa ainda adolescente e foi viver em Teresina, capital recém-fundada do Piauí.
É importante destacar esse detalhe: Jovita já era uma mulher em movimento antes mesmo de virar notícia nacional. Numa sociedade que limitava o espaço da mulher ao lar e ao casamento, ela já transitava sozinha entre cidades, buscando alternativas para sobreviver e se afirmar.
A guerra a chamou, e ela respondeu com farda e coragem
Em 1864, o Brasil entrou em guerra contra o Paraguai, num dos conflitos mais sangrentos da história sul-americana: a Guerra do Paraguai (1864–1870). O país convocava “voluntários da pátria” para combater no front. As campanhas de recrutamento se espalhavam pelos jornais, igrejas e praças públicas.
Foi nesse contexto que Jovita, aos 17 anos, decidiu se alistar. Mas como uma mulher poderia ser aceita?
A solução foi radical: cortou os cabelos, amarrou os seios, vestiu roupas masculinas e apresentou-se como homem. Passou por alistamento militar em Teresina e foi aceita. Durante alguns dias, viveu entre os soldados até ser desmascarada por uma vendedora que notou seus traços femininos e os furos de brincos nas orelhas.
Ao ser levada à autoridade policial, declarou com firmeza:
“Quero vingar as mulheres brasileiras violentadas pelos soldados do Paraguai. Quero lutar com espada nas mãos.”
De fraude a símbolo nacional: Jovita virou heroína
A coragem de Jovita comoveu o presidente da província do Piauí, Franklin Dória, que decidiu apoiá-la. Concedeu-lhe o título simbólico de segundo-sargento, farda oficial e um lugar na comitiva que levaria os soldados ao Rio de Janeiro, a capital do Império.
Durante a viagem, sua imagem ganhou o país. Por onde passava Salvador, Recife, Maceió, Aracaju, Vitória era recebida com flores, discursos, homenagens e versos. A imprensa a chamava de “Joana d’Arc brasileira”. Jovita desfilava altiva, orgulhosa, com espada na cintura. Sua presença provocava admiração e desconforto.
Ela não era apenas uma jovem corajosa: era uma mulher ousando ocupar um lugar proibido. E isso o poder imperial não aceitaria facilmente.
O império aplaudiu, mas nunca permitiu que lutasse
Ao chegar ao Rio de Janeiro, Jovita manteve seu propósito: exigiu ir ao front. Mas o Ministério da Guerra negou. Argumentou-se que a presença de uma mulher entre soldados seria indecorosa, perigosa e inaceitável para os padrões da época.
Mesmo com o apoio popular e de figuras políticas influentes, o Exército recusou sua participação nas frentes de batalha. O próprio Dom Pedro II a recebeu em audiência, mas nada mudou. Ofereceram-lhe o cargo de enfermeira ou uma função administrativa papéis considerados “adequados para senhoritas”.
Jovita recusou. Sua missão era lutar. Ser farda apenas para posar não lhe interessava. E, com isso, começou seu afastamento da narrativa heroica que o império desejava.
O esquecimento após o espetáculo
Após a negativa, Jovita retornou ao Piauí, mas foi rejeitada pela própria família. O que antes era orgulho se transformou em vergonha. Sem aceitação, voltou ao Rio de Janeiro, vivendo com poucos recursos, em pensões e casas de apoio.
Foi nesse período que conheceu William Noot, engenheiro inglês, com quem viveu um romance. Ele prometeu casamento, mas voltou para a Europa e deixou apenas uma carta em inglês, idioma que ela não compreendia. Achando-se abandonada, entrou em profunda melancolia.
No dia 9 de outubro de 1867, foi encontrada morta com um punhal cravado no próprio coração, em uma pensão simples. Tinha 19 anos. Ao lado, um bilhete:
“Ninguém é culpado por minha morte.”
Por que Jovita foi esquecida por tanto tempo?
Apesar do alarde inicial, o Império rapidamente silenciou sua memória. Sua imagem já não interessava ao Exército. Não era mártir de guerra, nem símbolo de obediência. Era mulher, ousada, e havia desafiado as hierarquias.
Durante mais de um século, seu nome ficou restrito a pequenas notas em livros de história. A ideia de que ela “tentou, mas fracassou” ainda prevalecia.
Mas será que fracassou?
O que representa o legado de Jovita Feitosa?
A resposta é não. Jovita não fracassou. Ela se tornou, ainda que involuntariamente, símbolo de resistência feminina num dos períodos mais rígidos da história brasileira. Foi a primeira mulher no Brasil a tentar formalmente integrar o Exército para lutar como soldado. Sua história antecede em quase cem anos a presença oficial de mulheres nas Forças Armadas.
Aos poucos, sua memória foi sendo resgatada. Em 2017, seu nome foi inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade, em Brasília.
Hoje, escolas, ruas e praças em todo o país prestam homenagem a essa jovem que ousou romper o papel que a sociedade lhe impôs.
Jovita vive: um nome que virou luta
Hoje, Jovita Feitosa é nome de escolas, ruas, centros culturais. Mas, mais que isso, é símbolo da mulher que não aceita o destino que lhe impõem. Seu legado não está nas armas que não empunhou mas no gesto político de exigir igualdade, mesmo sabendo o preço que isso teria.
Jovita não morreu apenas de amor ou solidão. Morreu de abandono institucional. Morreu porque teve coragem demais para o tempo em que viveu.
E é por isso que sua história precisa ser contada, repetida e lembrada.